Balenciaga, Demna e o fim da era dos likes
Será que o ciclo de popularização do mercado de luxo chegou ao seu limite?
(Essa semana, minha proposta era publicar o texto sobre a Modernidade, mas, com a alta-costura pegando fogo, precisamos falar sobre o possível fim da era democrática na moda).
O mercado de luxo, por muito tempo, vendeu produtos e se relacionou com seus clientes de maneira próxima, quase familiar. O interesse era que pessoas com poder aquisitivo suficiente frequentassem suas lojas e eventos. Um resquício dos protocolos da corte francesa: tinham acesso ao melhor apenas os amigos do rei. A comunicação era direcionada a um pequeno círculo seleto que incluía Hollywood, aristocratas, realeza e herdeiros magnatas. As histórias de tradição e extravagância, a educação para perceber o refinamento, a busca pela perfeição incansável, faziam parte de um mundo exclusivo, feito para muito poucos. A classe média tinha contato com as grandes marcas de luxo de forma aspiracional e copiava seus costumes através de revistas e jornais. Pessoas pobres viviam em um mundo à parte. A Segunda Guerra terminou, o rock tocou, a televisão chegou e a juventude começou a vestir jeans e camiseta. Entre os anos 60 e 70, Pierre Cardin, Yves Saint Laurent, Dior e até Chanel passaram a expandir seus negócios vendendo roupas prontas (prêt-à-porter) no Le Bon Marché. A moda de luxo saía dos ateliês de alta-costura, mas sua clientela ainda era composta pela elite euro-americana com “bom gosto”.
Na década de 80, um posicionamento mais arrojado foi iniciado pelo homem mais rico do mundo atualmente: Bernard Arnault. Ele deixou a França socialista e foi empreender nos Estados Unidos no ramo imobiliário. Segundo a lenda, ao pegar um táxi em Nova York, ele perguntou ao motorista o que ele sabia sobre a França, e a resposta foi: “Eu não sei quem é o presidente, mas sei o que é Dior.” A maioria dos taxistas à época talvez respondesse Platini (jogador de futebol), mas esse respondeu Dior. Apesar de pouco convincente, a história é boa para justificar o início da construção do império que se seguiu. Arnault comprou a deficitária Agache-Willot-Boussac em 1984, uma holding proprietária da Christian Dior e da Le Bon Marché, por 1 franco francês (aproximadamente 14 centavos de dólar na época) e demitiu 9.000 pessoas, iniciando o processo de reestruturação.
A década de 80 foi particular nos Estados Unidos e bastante diferente na forma de negociar francesa. Foi durante seu período por lá que Arnault antecipou que o mercado de luxo precisava mudar para se adequar a um novo momento econômico: a globalização e a explosão de Wall Street. O governo Ronald Reagan desregulamentou restrições do mercado financeiro e a introdução dos computadores nas mesas de operações criou uma nova velocidade para a análise de dados e negociações de ações. Os lobos de Wall Street eram corretores sem pedigree que se transformavam, da noite para o dia (overnight, literalmente), em milionários buscando ostentação. Arnault compreendeu rapidamente quem estaria disposto a comprar “prestígio aristocrático” e começou a engendrar o que ficou conhecido como “luxo de massa”. Em pouco tempo, ele mesmo virou o “Lobo de Cashmere”.
Ainda nessa década, um novo personagem começou a se consolidar no sistema de moda: o diretor criativo. Cada vez mais, as marcas deixaram de ter a assinatura de seus fundadores e passaram a contratar funcionários para desempenhar o papel. Um exemplo é Karl Lagerfeld, que foi nomeado diretor criativo da Chanel em 1983.
HIGH LOW
A internet, a expansão da imprensa e as políticas de mercado aberto trouxeram para a década de 90 uma nova relação com as fronteiras nacionais, facilitando que marcas européias e americanas ampliassem suas sedutoras histórias para um número muito maior de consumidores. A palavra mais importante dos negócios era “escalabilidade”. A primeira capa de Anna Wintour na Vogue foi publicada em 1988, com a modelo Michaela Bercu vestindo uma jaqueta de alta costura da Christian Lacroix combinada com jeans desbotados da Guess. O verdadeiro groundbreaking.
De forma gradual, a comunicação que gerava desejo para um seleto grupo de clientes, frequentadores das lojas nas capitais mais valorizadas do mundo, poderia conquistar pessoas em periferias e países em desenvolvimento, não necessariamente ricas de família. Assim como as marcas esportivas estouravam pelo globo vendendo os méritos do self-made man, as marcas de luxo entenderam que estavam perdendo um grande mercado: o cidadão comum. Nesse momento, começaram a ser consideradas como clientes potenciais do luxo pessoas que poderiam economizar por anos para enfim comprar uma bolsa ou outras que se endividariam em parcelas a perder de vista para ostentar um mero perfume. Quem não lembra de Sex and the City e Carrie Bradshaw sem dinheiro para morar e com 300 pares de Manolos no closet? Foi nessa mesma década que Chanel, sob Karl Lagerfeld, passou a incluir jeans, jaquetas de motoqueiro e a mochila Duma no portfólio.
A genialidade de Arnault e de outros CEOs de casas de luxo foi ser “haute, sem ser arrogante” (como escrito na capa de Wintour na Vogue) e começar a encantar todo e qualquer ser humano com acesso a meios de comunicação. Eles criaram um portfólio de produtos acessíveis, que carregam altas margens de lucro: óculos, bolsas, perfumes, camisetas, moletons, jeans, etc. O princípio de qualquer negócio de luxo é criar um imaginário de vida desejável, a ponto de você esquecer o valor e apenas sentir a experiência de poder, algo que a corte francesa faz magistralmente desde Versalhes.
Na década de 90, essa estratégia de criar ainda mais acessibilidade para a moda precisou de um novo perfil de criador, alguém que falasse a linguagem das ruas e pudesse interpretar seus desejos. Arnault se mexeu rápido e fez dois jovens em início de carreira, suas estrelas. Em 1995, Galliano (filho de um torneiro mecânico) e, em 1996, McQueen (filho de um motorista de táxi) começaram a dirigir as principais marcas do grupo, Givenchy e Dior. Arnault e sua família construíram seu império comercializando o principal produto francês: o luxo. Seja ele uma jóia, um vestido, um hotel, um restaurante, mas principalmente uma aspiração para os não herdeiros, o ser humano “comum”.

DE GALLIANO E MCQUEEN À DEMNA
Até agora contei a história de Bernard Arnault, controlador da LVMH (Louis Vuitton Moët Hennessy), enquanto a Balenciaga está no portfólio de seu mais próximo concorrente, a Kering, de François-Henri Pinault. No entanto, Pinault entrou no mercado de luxo apenas em 1999, em uma briga com a LVMH pela Gucci. Ele venceu e comprou no mesmo ano a Yves Saint Laurent e a Boucheron. Em 1999, porém, Arnault já havia adquirido a Louis Vuitton, Givenchy, Berluti, Kenzo, Guerlain, Celine, Loewe, Marc Jacobs e Sephora. Apesar de atrasado na corrida, a Kering fez importantes aquisições em 2001, entre elas a Bottega Veneta e, o motivo do nosso texto, a Balenciaga.
Os analistas de mercado dizem que Arnault conseguiu chegar ao topo da lista dos homens mais ricos do mundo por unir a narrativa de poder do mercado de luxo europeu com a estratégia de expansão do mercado americano e rapidamente virou uma referência global. Como o próprio magnata comenta em um vídeo, Steve Jobs nos anos 2000, pediu conselhos de estratégia de varejo para ele. Jobs queria abrir lojas da Apple ao lado da Louis Vuitton. Arnault aplaudiu a estratégia de Jobs de transformar um objeto de mera utilidade em um artigo de distinção social apesar de todos o taxarem como maluco.
Apesar de manter um olhar afiado no mercado de tecnologia, que crescia com velocidade, nem mesmo Arnault poderia antever o impacto das redes sociais e aplicativos na estrutura mundial. Não conseguiu, pois nem o próprio Vale antecipou o que seria o Facebook. Por sorte, ou por instinto, quando as redes sociais se popularizaram ele estava mais do que preparado; na verdade, as redes casaram perfeitamente com a ideia de “democratização do luxo”. Não por coincidência, foi com as redes sociais que a fortuna da família Arnault decolou.
Mark Zuckerberg fundou o Facebook em 2004 e comprou o Instagram em 2012 com 30 milhões de usuários. Após três anos sob a nova gestão, o Instagram atingiu 370 milhões de usuários ativos mensais. Nesse novo momento da comunicação global e geração de conteúdo, François Pinault não ficou para trás e, assim como Arnault contratou McQueen e Galliano na primeira fase da globalização, o dono da Kering fez uma jogada perfeita ao contratar Demna Gvasalia para assumir a direção criativa da Balenciaga. Era 2015 e a moda mundial era movida a likes, Kanye e Kim.

O ENCONTRO DO LUXO COM O POVO
A elite mundial não é o público das redes. Ricos herdeiros no Brasil mantêm suas contas fechadas. Abilio Diniz dizia preferir a comunicação tradicional, assim como João Moreira Salles e Caetano delega sua conta. O motor das redes sociais é o popular. Jogadores de futebol, cantoras pop, comediantes e, na moda, influenciadores que ensinam como ter cara de rico. Parte desse letramento do que é “bom” foca em explicar o valor das marcas e como elas ajudam a fazer você ser visto de forma diferente ao entrar em um shopping ou frequentar um evento de marca. O estreitamento do universo do luxo com a realidade da maior parte dos habitantes do mundo seria impensável há alguns anos.
Não estávamos mais falando de classe média suburbana (as Carries), agora o luxo se comunicava com as classes C e D de países com enormes desafios econômicos. Nesse encontro de mundos, realmente não é fácil explicar como uma bolsa de couro e ferragens douradas pode custar mais do que a casa onde uma pessoa mora. Como assistir a um desfile de alta costura hiperconceitual no ponto de ônibus e achar normal? É para rir e se perguntar: “que diabo de roupa é essa?”, como fez Jojo Todynho (já rica) ao assistir a uma das apresentações da Margiela há alguns anos.
Essa primeira trombada da população de massa com a alta moda rendeu muitos memes e as maisons, mais uma vez, precisaram se adaptar. Mas, onde há pobreza, há o desejo de uma vida melhor e o lema do grupo criado por Arnault é: “For a dream, there is no price.” (NYT, 2023)

Demna sempre se inspirou nas subculturas que desafiam as regras tradicionais de etiqueta e exclusividade. Seu processo criativo permeia o deboche. Essa é a sua assinatura. Ele foi essencial para aproximar a moda europeia de uma nova cultura pop, construída de forma crua e com baixa técnica formal, que emergiu nas redes sociais a partir de 2010 (ano em que o Instagram foi lançado). Com seu irmão, ele fundou a Vetements em 2014, que foi um sucesso imediato. Vetements quer dizer roupa. Direto ao ponto. Sem rodeios, a ideia era trazer para as passarelas a rispidez do mundo real, as bizarrices do hiper-capitalismo, a política, a verdade das ruas. Os Gvasalias compreenderam o ethos emergente dos novos meios de comunicação: ser popular.
Em 2015, a Vetements foi uma das marcas finalistas do prêmio LVMH ao lado de Arthur Arbesser, Coperni, Craig Green, Faustine Steinmetz, Jacquemus, Marques’Almeida e Off-White. Vetements não ganhou, mas, no mesmo ano, Demna foi alçado a diretor criativo da Balenciaga. Ele era a escolha perfeita para o hype que a moda precisava criar para sobreviver em uma nova economia que não comercializava apenas produtos palpáveis, mas principalmente acessibilidade e dados.
O MOVIMENTO DE INCLUSÃO E A ECONOMIA DE DADOS
A primeira década do Instagram foi sobre inclusão. Desde 2012, não apenas o antigo grupo Facebook, mas todas as grandes big techs injetaram quantias trilionárias no movimento de diversidade. Afinal, essas redes comercializam dados, e nesse modelo de negócio não importa seu poder aquisitivo, e sim o seu poder de mobilização. Seja dançando, mostrando sua vida, fazendo piada, denunciando violências, criticando ações políticas, fofocando ou defendendo pautas, o modelo lucra com conteúdos que engajam e mantêm as pessoas rolando seus feeds. Quanto mais diversos forem os clientes das plataformas, melhor a segmentação identitária para os anunciantes. Portanto, ser preciso nas micro singularidades da sua identidade é ouro para a venda de publicidade e, como sabemos, também para a venda de informações a governos e partidos políticos. Pense: hoje, uma pessoa pode nunca ter ido ao dentista, mas ela tem uma conta em uma rede social.
Foi por esse motivo, a ampliação de mercado das redes e inclusão de pessoas antes marginalizadas pelo mercado de luxo, que os produtos de Demna eram perfeitos para o momento. O primeiro sucesso estrondoso desse novo ethos da moda aconteceu ainda na Vetements. Em 1 de outubro de 2015 um modelo andou na passarela dos irmãos Gvasalia com uma camiseta da DHL. O uniforme do mais corriqueiro entregador postal virou o produto de moda mais importante de 2016, vendido a 185 libras esterlinas, hoje por volta de 1.000 reais.
"É diferente da maioria das marcas de luxo, que buscam ser mais exclusivas – algo que nem todos podem ter", diz Karen Van Godtsenhoven, curadora associada do Costume Institute do Metropolitan Museum of Art e especialista no trabalho de Gvasalia. "Ele cria roupas para um raver, uma empresária, um segurança, e é uma abordagem mais democrática, dizendo que todos esses são tipos iguais." (Vogue US, Fevereiro, 2020)
A inspiração dos produtos não era tirada de salas de museus ou áreas nobres das cidades, mas sim de tudo que era invisibilizado. Hoje, o primeiro desfile dele na Balenciaga (Fall 16) parece muito menos chocante do que na estreia, mas basta voltar apenas uma estação e comparar com o anterior, assinado por Alexander Wang, para entender a mudança. No de Wang, uma parada de noivas em cetim branco; no de Demna, plataformas góticas, puffer jackets e casacos de inverno estilo North Face. O DNA rebelde e o talento de construir formas complexas conquistaram a crítica. Logo nas primeiras coleções, as imagens viralizaram e conquistaram astros pop. Na Vetements, Demna exercitava mais liberdade; na Balenciaga, os primeiros desfiles eram mais contidos e relativamente fiéis ao refinamento do mercado de luxo. Aos poucos, isso foi mudando, e Demna passou a levar a estética da Vetements para a maison. Talvez inclusive por uma imposição do negócio que via os produtos-meme voarem das prateleiras. Demna deixou a marca familiar em 2019, enfrentou uma briga pública com o irmão que o acusava de copiar a Vetements, e em 2021 ele cortou o sobrenome, passando a se apresentar apenas pelo primeiro.
O sucesso iniciado na Vetements passou dar grande visibilidade para a Balenciaga. As referências das passarelas eram reconhecíveis por pessoas de diferentes realidades e essa mistura era engraçada por sua estranheza – memes prontos. Com essa estratégia, o mundo da moda foi permeando o imaginário de cada viela carente do mundo. Demna talvez não tenha tido consciência de toda essa engrenagem no início; talvez ele estivesse apenas sentindo o zeitgeist do momento. Entretanto, ele sempre deixou clara sua compreensão sobre o sistema de moda e, assim como a audiência popular, pensava estar promovendo uma revolução quando, na verdade, participou da expansão do colonialismo francês pelo mundo. Nada melhor do que um ativista para engajar o público nas redes.
“Comecei a Vetements em um período em que, através da internet, a raiva dos jovens se tornou relevante novamente, e eu tinha muita raiva”. (032c, 2016)
A REVOLTA DE MILHÕES
Trazer o olhar da subcultura revoltada das ruas para a Balenciaga foi um passo arriscado que gerou cifras consideráveis. A “roupa de rua” – moletons, tênis, camisetas – são itens baratos para produzir e, com a logo da Balenciaga, os markups ultrapassaram os dois dígitos. Em 2017, a Balenciaga experimentou um sucesso fenomenal, especialmente com acessórios como o tênis Triple S, aproximando-se de €1 bilhão em receita anual. Em 2018, três anos após Demna assumir, as vendas dobraram e as redes só falavam de Balenciaga. A maison foi considerada uma das marcas de crescimento mais rápido do mercado. “Como ele tem o cuidado de criar roupas que as pessoas realmente querem usar, ele se envolveu com uma nova geração de clientes, que são mais abertos a misturar e experimentar”, declarou encantado seu chefe, François-Henri Pinault, em 2020. Enganam-se, porém, aqueles que depõem contra Demna dizendo que ele prefere produtos populares pois não sabe as técnicas para construir roupas de altíssima qualidade. Pelo contrário, ele é um exímio artesão da moda e, exatamente por seus caimentos, acabamentos e qualidade, foi capaz, como poucos, de encantar críticos, historiadores da moda, empresários e o “povo” com seus espetáculos.
Em 2021, a marca continuou a crescer, com a Kering reportando um aumento de receita de 35% no primeiro trimestre do ano, destacando a Balenciaga como uma das mais fortes do grupo nesse período, e Demna recebeu um presente. As coleções de alta-costura, antes assinadas apenas pelo fundador Cristóbal Balenciaga, voltariam a desfilar sob seu olhar. O sistema é irônico. Depois de 50 anos, a Balenciaga voltaria à alta-costura apresentando jeans, camisetas e algumas formas icônicas do passado da marca. Cristóbal encerrou suas atividades em julho de 1968, apenas dois meses após a eclosão do movimento estudantil que, junto a partidos políticos, tomou Paris reivindicando a destituição do conservador Charles de Gaulle e a renovação dos valores de costumes, principalmente de liberdade sexual. Já com a saúde debilitada, Balenciaga fechou as portas decepcionado com os novos rumos da moda, que se afastava do perfeccionismo da alta-costura e se aproximava da rua. Entretanto, de 1968 a 2021 muita coisa mudou e a palavra do momento na moda era o popular “like”.
“Eu não tuito, graças a Deus, nem faço nada do tipo. Eu faço roupas. Para mim, curtidas no Instagram são tão irrelevantes quanto fazer um produto e depois fazer uma pesquisa sobre o que as pessoas acham dele. Para mim, design de produto é acreditar em algo; é sobre sentir. E no passado, minha intuição sempre me levou aos lugares certos.”
Apesar de se declarar invulnerável aos likes, os produtos esgotavam das prateleiras na velocidade de um clique. O sucesso, no entanto, parecia não contaminar o ativista criativo que se mantinha resistente às tentações vaidosas do mundo da moda. Em 2017, ele se casou com o músico e compositor francês Loïk Gomez e se mudou para um chalé na Suíça, no meio da floresta, para ganhar distância criativa do caldeirão fashion da capital francesa. Ele se tornou vegetariano e começou a se exercitar, voltando para Paris apenas uma vez ao mês para provas de roupa. Ele também não se tornou um workaholic como seu antecessor na Balenciaga e um dos diretores criativos mais longevos em grandes marcas de luxo da atualidade, Nicolas Ghesquière. Enquanto a lenda diz que Ghesquière trabalha 24 horas, 7 dias por semana, Demna declarou à Vogue em 2020 que ele trabalhava apenas 3 dias na semana para a Balenciaga e no resto do tempo vivia seu ócio criativo em concertos, exposições e osteopatas.
FRANCO ATIRADOR
Em outubro de 2019, eu e a jornalista Isabel Junqueira dedicamos um episódio do High Low Podcast para falar sobre a ascensão meteórica da Balenciaga. O título, “Precisamos falar sobre Demna”, era uma alusão ao filme “Precisamos falar sobre Kevin”, onde um garoto tem uma relação de amor e ódio com a mãe. Kevin vai crescendo em um sistema perverso de carinho e ressentimento, até sair atirando em todos. Era assim que víamos Demna em sua relação com a moda. Amor e desprezo. Um desfile com uniformes de entregadores da DHL na semana de moda de Paris era ele atirando por todos os lados.
Na descrição do episódio, escrevemos: “Ele nasceu na Geórgia, estudou na Bélgica, trabalhou em Paris e transformou uma camiseta de entregador de correspondência em artigo de luxo no mercado mundial. Demna Gvasalia está à frente da Balenciaga desde 2015 e tem estampado a vida marginal do cotidiano das ruas nas principais revistas de luxo e comportamento. Um criador que entende o sistema no seu sentido mais estrutural, usa sua posição para marcar a história da moda para sempre. É esquisito, é estranho, faz pensar e, por isso, precisamos falar sobre Demna.”
A colaboração com a DHL foi tão surpreendentemente bem-sucedida que a maioria das marcas tentou copiar a estratégia, como diz Aleksandra Szymanska, Diretora de Arte da Aesop, no site da DHL em 2022. “Na era do Instagram, as regras do jogo da moda estão mudando. A logomania ostentosa que era tão popular nos anos noventa está sendo substituída por declarações visuais – Moschino com seu suéter do McDonald’s; Anya Hindmarch com sua bolsa Kellogg’s. Eles estão hackeando o sistema da moda e são credíveis o suficiente para fazer essas declarações de kitsch capitalista”. (DHL, 2022)
O DECLÍNIO DO KITSCH CAPITALISTA
Kitsch capitalista. É uma maneira de nomear o estilo de Demna e o sucesso meteórico da Balenciaga. Mas, passada uma década, a fórmula precisa ser renovada – o sistema de moda é feito de substituições – e Demna não parece estar disposto a isso. Os desfiles mais recentes da marca viralizaram não por bons motivos. A fórmula parece ter se esgotado. Com as redes, as marcas de luxo conseguiram infiltrar sua máquina de desejos nas mais diversas realidades sociais. Hoje, você ainda encontra uma ecobag de supermercado da Balenciaga, no mais fino couro de bezerro, por R$ 23.000,00 ou a famosa saia de toalha por módicos R$ 8.000,00. Mas Demna está diferente. E o mundo das redes sociais também.
O sistema de moda parece ter superado a ideia de “democratização”. Talvez pelo hype hiper aquecido do mercado de influência ter começado a filtrar seus reais talentos e o dinheiro que pagava pelos produtos lacradores ter desidratado; talvez pela dificuldade econômica ter convertido desconstruídos em conservadores; talvez pelo sistema de luxo ter cansado dos escândalos, dos exageros, do povo mesmo. Não que o mundo do luxo tenha algum dia genuinamente gostado de ver saquinhos de salgadinho em suas vitrines, nem ter que lidar com subcelebridades do terceiro mundo, mas dinheiro é dinheiro. E o dinheiro do marketing da inclusão e da diversidade começou a sumir.
Além disso, o famoso escândalo envolvendo fotos da Balenciaga com crianças, que ocorreu em novembro de 2022, fez a marca virar um exemplo de repúdio no mundo religioso. A controvérsia que quase derrubou a Balenciaga, surgiu diretamente de duas campanhas publicitárias – uma em que modelos infantis foram fotografados segurando “ursos de pelúcia BDSM” e uma campanha subsequente (para a coleção primavera/verão 2023), estrelando Bella Hadid, Isabelle Huppert e Nicole Kidman, que mostrava uma bolsa Balenciaga x Adidas posicionada em cima de uma pilha de papéis, incluindo uma página da decisão da Suprema Corte dos EUA de 2008 no caso U.S. v. Williams. Esse caso considerava elementos da Primeira Emenda em conexão com uma condenação por pornografia infantil. As campanhas geraram indignação pública e mexeram com uma audiência importante para o mercado de produtos de alto padrão. Demna afirma não entender como as duas campanhas tiveram esses incidentes relacionados.
Em 9 de fevereiro de 2023, Demna deu uma entrevista para a Vogue intitulada “Demna Gravado: O Designer da Balenciaga sobre a Controvérsia da Marca e seu Caminho para Frente”, onde teve a oportunidade de se desculpar. O homem determinado que em 2019 dizia não se importar com likes ou opiniões alheias estava ainda mais recluso e procurando reencontrar uma confiança visivelmente abalada. A primeira parte da entrevista é um repertório de auto responsabilização e questionamento sobre como tudo aquilo poderia ter acontecido sem qualquer alerta. A segunda parte, porém, traz uma visão sobre o futuro e uma declaração um tanto confusa sobre a ligação do diretor com a cultura pop:
“Para ser muito honesto, não estou interessado na cultura pop. Sim, nos tornamos parte dela, de certa forma inconscientemente da minha parte, e tudo bem, mas não posso dizer que minha visão criativa ou abordagem ao design tenha sido influenciada por ela. Ela veio até nós, e não o contrário”. A repórter, confusa, pede para ele desenvolver melhor: “Você pode falar mais sobre o papel da cultura pop em seu trabalho para a maison? Porque, de fora, às vezes parece que a Balenciaga se posicionou para fazer parte da cultura pop de maneira bastante consciente e deliberada”. E ele completa: “Frequentemente, no meu trabalho, faço referência a coisas que são um tanto mundanas, relacionáveis e fáceis de entender, e, com o tempo, essa abordagem é a razão pela qual nos tornamos associados à cultura pop. Claro, também existe o aspecto das celebridades, mas tenho que dizer que nunca pensei em vestir celebridades ou direcionar meus designs para elas. Na verdade, fui bastante contrário a isso por um tempo, até que a marca cresceu de certa forma, ponto em que era inevitável [que trabalhássemos com elas]. Para mim, toda a noção de cultura pop é realmente… ela é popular; apela para muitos tipos diferentes de pessoas. E a parte da marca na cultura pop foi muito benéfica para a Balenciaga em termos de visibilidade e, consequentemente, obviamente, para o sucesso comercial: quanto mais você apela ou tem um impacto em mais pessoas como marca, com sua linguagem e sua estética, isso tem um impacto no seu negócio”. (Vogue.com, 2023)
A partir dessa entrevista, podemos perceber como a relação entre criador de moda e negócio de moda são muitas vezes campos opostos. Quando as coisas dão errado, no entanto, é o diretor criativo que é lembrado pela derrota. Na matéria, ele diz que nunca quis vestir celebridades (e eu acredito), mas o sistema de moda conduz o que vai ser feito. Em julho de 2022, apenas sete meses antes dessa reflexão na Vogue, o 51º desfile da Balenciaga na semana de alta costura teve como casting Kim Kardashian, Nicole Kidman, Naomi Campbell, Dua Lipa, Bella Hadid e Christine Quinn. Foi inclusive a primeira vez de Kim em uma passarela, que declarou à imprensa que o sentimento era de “a dream come true”. Novembro trouxe o escândalo das campanhas e, em dezembro, todas as celebridades cortaram relações com a marca e consequentemente com Demna.
“DESIRABILITY”
Em setembro de 2023, quando Bernard Arnault chegou ao topo da Forbes pela primeira vez, as jornalistas Liz Alderman e Vanessa Friedman publicaram uma matéria sobre o feito. É interessante perceber a relação de alguns países com os caminhos do dinheiro e do poder: “Na França, o Sr. Arnault se tornou um para-raios para a raiva em relação à crescente desigualdade econômica. Em abril, 10 dias após a Forbes colocá-lo no topo de sua lista anual de pessoas mais ricas, manifestantes invadiram seu escritório em Paris durante greves nacionais contra o aumento da idade de aposentadoria. Sua efígie foi queimada como um símbolo do mal capitalista”.
Como ele próprio diz na matéria: “A França não é um país motivado pelo sucesso nos negócios, ao contrário dos Estados Unidos”. E complementa dizendo que quando seu amigo Warren Buffett anda por Manhattan: “ele é como um Beatle.” Mas quando o Sr. Arnault visita suas lojas na França, “eu tenho que ter cuidado,” ele disse. “Eu não gosto disso, mas preciso de seguranças.”
A “Desejabilidade” é a palavra mais popular na LVMH. Mas isso destaca um problema potencial, como disse um dos seus executivos: “Um consumidor acordando e dizendo: ‘Sabe, estou comprando este produto, mas há alguém ganhando tanto dinheiro com isso. É desejável que você esteja comprando um produto de alguém que é o homem mais rico do mundo?’”
Se na França ser bilionário é um problema e nos Estados Unidos o status eleva a pessoa a celebridade, outros países têm uma relação ainda mais controversa segundo o mesmo executivo:
“Quando o Sr. Arnault visitou a China, um dos mercados mais lucrativos da LVMH, as manchetes de “homem mais rico”, de meses antes, lhe renderam uma recepção de estrela do rock. Em Xangai e Chengdu, multidões o seguiam e disputavam selfies. Mães pediam para ele abençoar seus bebês. ‘Como o papa. Você acredita nisso?’. Ele foi chamado, ele disse com uma risada, de ‘o Deus da Fortuna.’” (NYT, 2023)
Faz 40 anos desde que Bernard Arnault comprou a Dior após sua estadia nos Estados Unidos. Faz pouco mais de 20 que a Kering comprou a Balenciaga. O Instagram faz 14 anos em outubro desse ano. Demna está há 9 na direção da marca centenária. Todos esses, e não apenas eles, foram fundamentais para o fenômeno da “democratização” do mercado de luxo. As redes sociais incluíram pessoas antes excluídas da conversa da alta moda e passou a ser desejo de quem enfrenta dificuldades em pagar contas essenciais.
Hoje, você se depara com pessoas em situação de rua ostentando versões pirateadas de Chanel, Gucci, Prada, Louis Vuitton e Balenciaga. É uma imagem que chega a dar vertigem: a fome vestida com o substrato do sistema de moda. O que é importante analisar é como isso aconteceu. Com o aparente declínio das redes sociais como as conhecemos, resta saber se o mercado de luxo irá de alguma forma se fechar novamente para manter seus valores de distinção.
Um negocio é feito de mercado e nas últimas décadas as redes incluíram uma audiência mundial com desejo de fazer parte desse sonho de poder. Agora, pós escalabilidade, os seguidores parecem ter se cansado dos memes. O sistema de moda atual está mais uma vez se reorganizando. Em fevereiro desse ano a marca das irmãs milionárias Mary-Kate e Ashley Olsen baniu celulares de seu desfile.
É importante ressaltar que os donos de todos os conglomerados continuam tendo o mesmo perfil de raça, gênero e sexualidade na detenção de poder histórico. De certa forma, eles continuam sendo os verdadeiros empoderados. A revista Forbes americana publica desde 1987 sua lista de bilionários. Na primeira edição havia 140 nomes, a lista hoje conta com 2.781, sendo 69 brasileiros. François-Henri Pinault ocupa a 54ª posição e Bernard Arnault e família estão no topo da lista.
Talvez Demna tenha percebido o lugar de sua revolta e por isso tenha escolhido como trilha sonora para a última coleção de alta-costura uma meditação guiada. Mas, talvez não tenha motivo algum.
CONTINUE A HISTÓRIA NO HIGHLOW PODCAST
Eu e a jornalista Isabel Junqueira fizemos cinco temporadas de um podcast sobre diferentes aspectos da moda. Ele teve seu último episódio publicado em 2021, mas os assuntos não saem de moda.
T4E1 | Luxo: entre civilização e barbárie.
T4E4 | Precisamos falar sobre Demna.
Nossa, amei muito esse texto!
Eu sempre fico perplexa com a sua capacidade de ampliar a visão sobre o que é a moda para pessoas leigas como eu. Obrigada!