Moda, grana e o "estou me dando bem" core
Deolane e Gusttavo Lima me inspiraram para um texto.

Ontem estava almoçando com uma grande amiga indigenista e chegamos ao assunto das criptos. Para ela, é apenas um esquema de lavagem de dinheiro; para mim, uma tecnologia que precisa ser compreendida em suas raízes. Minha amiga ainda acha estranho eu trabalhar com moda e geralmente falar mais de outros assuntos do que de roupa. Ela disse que gosta, que trago visões inesperadas sobre os temas. Eu espero que sim, detesto me ver como um corpo entediante no mundo.
Eu adoro o lado frívolo do vestir, e quem já ouviu esse episódio do High Low sabe que eu defendo a frivolidade com unhas e dentes. Apesar disso, pensar a moda sempre foi, para mim, algo muito maior do que os objetos que decidimos usar para cobrir o corpo. Quando me deparo com alguém que me chama a atenção, me interessam mais os porquês e os ‘o quês’ que atravessam aquela imagem. Por que esse corpo está coberto? Por que as logos aparentes foram escolhidas? O que, nos objetos carregados por esse corpo, abre ou fecha portas em determinados lugares? O que a pessoa tenta esconder e o que ela gostaria de me fazer pensar sobre ela? Por que certas imagens sociais são premiadas e outras punidas? E, principalmente, quando certas linguagens, sejam na palavra ou no visual, começam a manifestar algo muito maior.
A parte boa da moda é exatamente ela ser menos ‘cabeçuda’ e mais divertida. Colocar um bom batom apenas para se sentir sedutora. Infelizmente ou felizmente, porém, minha cabeça é um pouco mais frita e são raras as vezes que, ao entrar em uma festa, eu não sorria internamente por identificar padrões simbólicos que unem e distinguem aquelas pessoas. O barato de trabalhar com moda, para mim, é mais entender como símbolos são construídos e diluídos. E não apenas símbolos vestíveis, mas também narrativas, tecnologias e linguagens. É impossível pensar nesse sistema de produção simbólica sem ser capaz de criar associações entre o vestir, a política e a economia.
Foi aí que, ao repetir, como muitos outros amigos, que cripto é apenas lavagem de dinheiro, ela se surpreendeu com a minha resposta: — ‘Mas até aí, o mundo da arte também é.’ Não apenas o mundo da arte. Recentemente, ouvi o podcast chamado No Rastro do Dinheiro. No último episódio, o investigador de polícia Beto Chaves vai das lojas de roupas do Brás até as criptos e declara que o volume de dinheiro não oficial rodando no mundo possivelmente é maior do que o declarado. E ele nem chegou ao assunto da ‘moda’, as bets.
Aqui você me pergunta, mas o que isso tem a ver com moda?
A contravenção é um dos maiores geradores de símbolos de ‘liberdade’ no mundo capitalista. E esses símbolos são sedutores. Liberdade entre aspas, uma vez que ela pode (em alguns casos — não na maioria) te levar para a cadeia. O mercado de luxo se sustenta pela necessidade de mostrar poder e, definitivamente, quanto mais você se arrisca por ele, maior é o impulso de exibir sua vitória com um belo relógio de ouro de 25.000 quilates e um diamante do tamanho de uma bola de tênis.
De uma maneira resumida: novas tecnologias estruturais (como a blockchain e as redes sociais) impactam as bases do mundo em que vivemos, e isso gera novas formas de fazer política e riqueza. Os novos recursos atraem novos atores, e essa reorganização geral oferece outras estéticas. Quem compreende as novas tecnologias, ou as brechas abertas por elas, torna-se o novo ícone. Esta semana, fiquei observando o caso Deolane e Gusttavo Lima. Para além dos delitos anunciados, há uma estética moldada pela tecnologia, pelas lentes dos celulares e pelos algoritmos das redes. A aparência, o corpo e o estilo de ambos comunicam que venceram um sistema arraigado em heranças de famílias tradicionais. A estética celebrada em um tempo carrega consigo os valores de sua época. Malhados, aperfeiçoados, tatuados, cobertos de marcas caras e jóias milionárias, eles são disciplinados no individual e indisciplinados no social.
O Outlaw
Maquiavel, no século XVI, já escrevera: ‘Mesmo sem ser virtuoso, o líder precisa parecer virtuoso’, ou seja, o governo das aparências para ascensão e manutenção do poder não é algo novo. O que muda são os recursos para se chegar ao poder. Política e economia são as bases que estruturam uma sociedade, as narrativas são os meios de convencimento e as tecnologias, os meios de produção, tanto de artefatos quanto de sentido.
A figura do fora da lei, daquele para quem as regras não se aplicam, tornou-se hoje a estética dominante, e para quem estuda estética, isso faz todo o sentido em um novo momento histórico, político e econômico, marcado pelo enfraquecimento dos acordos de fronteira estabelecidos após as duas guerras mundiais. A internet mudou tudo. Globalizou o mundo, e seus impactos, como os de qualquer tecnologia estrutural, não são imediatos. Se a imprensa, a máquina a vapor, a eletricidade, o telefone, o computador e a energia nuclear definiram as fronteiras do mundo no século XX, hoje, no século XXI, novas tecnologias impactam a consciência das fronteiras nacionais. Elas não estiveram sempre aí e não estarão sempre aí. Estranho, né? Apenas a história da humanidade.
Com as conexões do mundo digital ampliadas, nada mais coerente do que a emergência de uma estética e de um discurso que desafiam as leis institucionais. Lembre-se, desde seu início, ainda na década de 80, o mundo digital promove a liberdade individual (indivíduo = 1 pessoa, o ser humano considerado isoladamente na comunidade de que faz parte). Abaixo, o famoso comercial que a Apple exibiu durante o Super Bowl XVIII, em ‘1984’, dirigido por Ridley Scott. O Estado dá as ordens, a nova geração as quebra em busca de liberdade.
Talvez, neste momento, você esteja pensando que a culpa dos delitos da Deolane é do mundo que a tecnologia criou. Não é. E é. A tecnologia muda os processos e é implementada a partir de muitos vetores, principalmente políticos e econômicos. Condenar a tecnologia no caso de lavagem de dinheiro no mundo atual é uma tentativa desesperada e preguiçosa de enxergar o complexo sistema em que vivemos. No entanto, para quem trabalha com moda, observar esses atravessamentos torna tudo muito mais divertido. Acredite, a tatuagem não vira moda na Faria Lima do nada.
Sem injustiças
Eu estaria sendo injusta se restringisse o estilo contraventor apenas à estética pop. Afinal, com o suporte do No Rastro do Dinheiro, posso afirmar que o estilo ‘sou mais esperto que você’ se organiza bem entre camisas polo (se tiver o cavalo de polo gigante bordado, melhor ainda) e ternos italianos. O Faria Lima Core é um exemplo perfeito de organização simbólica de roupas e acessórios que comunicam ‘eu sou mais poderoso que você’. Diferente da galera do pop, os lobos de Wall Street têm um estilo mais conservador — a ideia é não ostentar na aparência para não levantar muito alarde sobre o que está rolando por baixo das mesas - mas nos últimos tempos, eles mesmos passaram a ficar mais confortáveis com adereços de ostentação. Como não se render ao espírito ‘disruptivo’ do nosso tempo?
Se existe mais grana não declarada transitando pelo mundo do que dinheiro oficial, a maracutaia está rolando em todo lugar. Não existe ambiente à prova de esquema. No entanto, pensando na mistura da estética e da tecnologia, o importante é compreender os agenciamentos das aparências que comunicam os valores de um tempo. A sociedade é feita de histórias que convencem a maioria. A verdade como ela é, na maioria dos casos, não é o melhor caminho para vencer. Nunca foi. E é aí que entender as simbologias do vestuário se torna tão importante para quem deseja ascender em um determinado meio.

A imagem é tudo
Uma das estéticas mais influentes do nosso tempo digital, sem dúvida, é a do Vale do Silício. Em 2015, antes de ser condenada por fraude, a ‘messias’ tecnológica Elizabeth Holmes recebeu o prêmio de Mulher do Ano da revista Glamour das mãos do ator Jared Leto. Em uma entrevista após o escândalo, ele disse: ‘Eu a ouvi falar antes no palco. Ela era extremamente inteligente, e nos encontramos em seguida. Gostei muito dela.’ Leto não apenas captou sua mensagem de mulher inteligente pela linguagem falada, mas também pelo visual minimalista ‘à moda Steve Jobs’ que ela cuidadosamente orquestrou.
Menos minimalista, o mago cripto Sam Bankman-Fried também convenceu milhares de grandes investidores com promessas de lucros exorbitantes. Ao olhar para um garoto de 20 anos, formado no MIT, descabelado e vestindo o mesmo moletom há três dias, como desconfiar que ele não seria o próximo Mark Zuckerberg? O prejuízo: 11 bilhões de dólares. Até Gisele caiu nessa.
A moda tem várias faces, tanto para quem veste quanto para quem tenta se aprofundar no seu sistema. Da vida glamourosa das celebridades aos candidatos à presidência, tudo faz parte do mundo da moda. A construção dos valores simbólicos do nosso tempo é um sistema complexo e, como já disse alguém cujo nome esqueci: ‘Simplificar demais as coisas é a melhor forma de não resolver nada.’ Existe uma beleza nisso tudo, a capacidade do ser humano de compreender códigos. Essa sensibilidade às demandas do tempo pode ser usada para criar obras de arte impactantes ou, como um mágico, fazer você desviar o olhar da realidade. E moda não é apenas isso, mas também é isso.
VOU ESTAR EM SÃO PAULO AMANHÃ
A blockchain é uma das tecnologias mais impactantes dos últimos tempos e tem influenciado a moda mais do que você imagina. Apesar de estar mal vista por causa do mundo cripto (e com razão), ela traz valores muito mais profundos sobre o futuro da sociedade. Se você estiver em São Paulo, espero você na Bienal do Parque Ibirapuera às 11h.
O NOVO SISTEMA DE MODA
E se você quer conhecer mais a fundo o que é a moda, como ela surgiu e como ela se organiza para gerar tendências, dá uma olhada no curso que vou realizar em outubro. Precisamos de articuladores mais informados se quisermos realmente promover mudanças na moda nacional.
Que delícia ler vc! Ouvir tb!🎉
Seus textos sempre me encantam Olivia! Gratidão por suas análises que fogem totalmente do lugar comum e da mesmice!