Que show da Xuxa é esse?
A moda pode ser um refúgio da dura realidade ou uma gaiola dourada em meio à terra arrasada.

A moda captura uma pessoa através da beleza. Uma imagem que um dia atravessa o olhar de uma mente sensível e devolve um feitiço. Quem se apaixona pela moda se encanta pela capacidade humana de reorganizar a crueza da realidade em possibilidades lúdicas de viver. O trabalho conjunto de estilistas, fotógrafos, stylists, cenógrafos e artistas de todos os gêneros é capaz de rasgar, como papel, o cimentado da vida burocrática, repressiva e sem graça. Enquanto o mundo quer nos aprisionar em uniformes, a moda nos faz estranhos e extravagantes. A moda, não como produção de roupas, mas como expressão, tem como objetivo último nos fazer sonhar.
O sonho é o grande motor do sistema de moda. Há quem olhe para esse sonho como a única possibilidade de escapar de uma vida massacrada pela banalidade do mal. Há quem veja esse sonho como uma forma alienada de existência. Há quem o interprete como uma estratégia de controle social. O sonho nos faz levantar da cama todos os dias. O sonho é nossa capacidade de ficcionar o sentido da existência e escapar do vazio existencial. Não é, portanto, estranho que a palavra escapismo se repita temporada após temporada e talvez seja a palavra mais publicada em capas de revistas e plataformas de tendências de moda. O lance é escapar do mundano, ser uma imagem inspiradora e interessante, seja raspando um moicano, seja investindo na bolsa do momento.
Mas e quando escapar deixa de ser uma estratégia de sobrevivência e passa a ser alienação?
Em tempos de acaloradas discussões sobre fake news, eu olho para a história e percebo que o ser humano tem uma relação interessante com a ficção, principalmente se a história contada der mais sentido para sua versão da realidade.

Quando a técnica de imprensa estava começando a aquecer e livros em línguas vernaculares (antes tudo era latim) se popularizavam na Europa, Conrad Gresner escreveu um dos ancestrais do Google, a Bibliotheca Universalis (1545). Nela, ele registra que, dos livros publicados pela nova tecnologia, a maioria era voltada mais para o lucro do que para a realidade dos fatos. Ele parecia realmente preocupado com como as verdades inventadas impactariam o conhecimento da história ao longo do tempo. Jorge Luis Borges, quase exatos 400 anos depois, publicou um conto chamado “Do Rigor da Ciência” (1946), onde cartógrafos chegam à conclusão de que o mapa de um império estava completamente distorcido e, por isso, gerava confusões e conflitos. Eles redesenham o território com métricas perfeitas, mas o mapa não é aceito pelos governados, pois ele é menos interessante do que outras representações anteriores, mais dramáticas ou convenientes. Baudrillard trouxe sua contribuição na década de 80, dizendo que “a hiper-realidade é um estado em que as simulações ou representações de coisas se tornam mais significativas e reais para as pessoas do que a própria realidade tangível. Em outras palavras, na hiper-realidade, não há mais uma clara distinção entre o real e o imaginário, entre o verdadeiro e o falso”. Encontrei uma citação de Salvador Dalí na internet que não faço ideia se é real ou manipulada para ser do artista, mas resume bem esse estado de alienação voluntária e, por ser conveniente, vou citá-la aqui:
“A diferença entre memórias falsas e verdadeiras é a mesma que entre joias: são sempre as falsas que parecem mais reais, as mais brilhantes”.
Ontem escutei o podcast do BoF com o resumo das semanas de moda de Paris, Milão e Londres. Imran Amed e Tim Blanks, logo de largada, se dizem chocados com o fato de que essa temporada foi visivelmente marcada por desafios financeiros. Diretores criativos com cortes de orçamento, cenografias reduzidas, side events cancelados, menos festas e jantares sem extravagâncias. As guerras e o realinhamento político mundial são inescapáveis: Estados Unidos vivendo uma eleição conturbada, China e Índia alinhadas com a Rússia, e o Oriente Médio em meio a uma guerra. Com os maiores mercados para o luxo comprometidos com a realidade, o sonho teve que ficar mais econômico. Foi ouvindo a conversa que me passou um filme na cabeça: os fashionistas da moda brasileira afirmando veementemente nas redes que este é O MOMENTO da moda nacional.
EXPECTATIVA E REALIDADE
Compartilharam comigo um trecho da entrevista da Constanza Pascolato no Roda Viva. Ela fala sobre como a moda e a economia são inseparáveis, dando exemplos de como, nos anos 80, a moda floresceu porque a globalização ainda não havia chegado. Em 2024, as perspectivas para o país têm sido positivas. Hoje, o Brasil é a 6ª economia que mais cresceu no mundo. Essa é uma notícia que nos ajuda a sonhar, mas ainda há muito de que se escapar: polarização política, desastres ambientais, altos índices de pobreza e desigualdade. Para vender um mundo de luxo no país, é preciso se esquivar de muita realidade, que insiste em surgir justamente naqueles delicados minutos entre a saída do hotel 5 estrelas e o Uber Black.
Lá fora é diferente, ou pelo menos a imagem enviada de lá fora. A relação dos fashionistas com suas viagens é esse equilíbrio entre a expectativa da audiência e a realidade do que acontece no dia a dia no exterior. Enquanto, nas redes sociais, as imagens são lindas, as festas incríveis e as comidas fartas, como se houvesse uma grande facilidade em fazer parte daquele mundo, a realidade envolve problemas com a língua, investimento arriscado para um possível trabalho futuro, súplicas para entrar em eventos, alguns constrangimentos com pessoas sendo barradas, e um sentimento de que deveria haver uma melhor compensação por todo o conteúdo gerado para as marcas internacionais. Este não é um parágrafo anti-fashionista. Para quem busca um lugar ao sol nesse universo, o caminho é enfrentar as adversidades e manter a cabeça erguida. Até estrelas como Kanye West e Virgil Abloh passaram por isso.

No último mês, ao ver a experiência de algumas marcas no exterior, podemos pensar que a moda brasileira está decolando. Uma situação em especial me chamou a atenção. No meu feed, grandes letras destacavam que designers independentes estavam começando seu processo de internacionalização. Fiquei profundamente feliz e curiosa sobre como esse processo estava acontecendo. Internacionalizar uma marca significa um planejamento detalhado e uma capacidade de investimento pouco acessíveis para marcas em vôo solo. Há casos reais, como o da Beira, mas isso significa contar com suporte financeiro familiar e manter as contas pagas sem a necessidade de sobreviver exclusivamente do negócio. Fora isso, grandes marcas, com negócios robustos, internacionalizam após um delicado estudo de mercado e milhares de reuniões com contadores e compradores. Birman e Farm são exemplos que parecem firmes. Internacionalizar uma marca é tão difícil que nomes fortes como Lenny e Osklen, apesar de toda a trajetória, não conseguiram expandir de forma sustentável. Internacionalização ‘real oficial’ vemos na Havaianas e na Melissa, que já se provaram depois de algumas décadas. Foi por entender os desafios da moda nacional em se manter no exterior que me surpreendi quando as principais mídias especializadas daqui anunciaram esses movimentos ambiciosos. Procurei entender melhor como, e quais instituições de fomento estavam por trás da internacionalização das marcas independentes.
Internacionalizar uma marca é um processo de resistência, de, no mínimo, médio prazo. Fechar uma compra com uma loja de departamentos ou abrir uma loja própria no exterior requer recursos que, para marcas independentes americanas e europeias, são bancados por seus respectivos órgãos oficiais como parte de um projeto nacional. Participar de um showroom, abrir uma pop-up ou fazer um desfile no exterior são experiências de grande aprendizado, mas não devem ser confundidas com internacionalização. O que muitas marcas nacionais heroicamente fazem é levar suas coleções em malas, de forma informal, para vender a pessoas próximas e amigos de amigos. No máximo, conseguem a atenção de um jornalista local bem-intencionado. E, diante de todo o terreno árido que as marcas brasileiras precisam enfrentar, fazer do limão uma limonada é uma estratégia de sobrevivência. Então, celebrar sua experiência internacional e melhorar um pouco a notícia é perfeitamente válido. O problema é quando as instituições de mídia fazem o mesmo.
Enquanto, na imprensa oficial de moda, a palavra ‘internacionalização’ sugere um avanço da moda brasileira, a realidade revela uma estratégia de comunicação que busca transmitir uma positividade de que tudo está indo bem, quando, na verdade, as marcas continuam operando de forma informal, com pouca perspectiva de crescimento a longo prazo.
A realidade nunca foi algo que vendeu bem. Na moda, então, é certamente um campo a se evitar. No entanto, precisamos ficar atentos aos desequilíbrios. Existe uma diferença entre dourar a pílula para manter o entusiasmo da audiência e criar um estado de positividade nocivo. Influenciadores têm a ‘licença poética’ de jogar com a verdade, mas nas empresas de mídia deve existir uma preocupação em equilibrar o lugar imaginado com o que de fato acontece. Na entrevista anterior que publiquei aqui na conta, Tim Blanks fala sobre a importância da crítica negativa — não a denúncia (que virou clickbait), mas a análise que estabelece uma relação factual com o mercado para que a mídia seja considerada confiável e não apenas uma ferramenta de marketing.
Desejar o bem, torcer, dar visibilidade são partes fundamentais de um sistema que cria oportunidades para muitos viverem de sua arte e imaginação. O cuidado está em não atravessar a linha da positividade e criar um ambiente de informações aspiracionais que não refletem as necessidades de ajustes de um sistema disfuncional. Se tudo está indo bem e o sistema está criando tantas oportunidades, o problema em não conseguir manter o seu negócio está apenas no talento e na perseverança do criador?
Precisamos aprender a não temer as más noticias.

ANDREZA
Eu e Andreza sentamos lado a lado no metrô do Rio de Janeiro. Como eu carrego o péssimo hábito de ficar de olho no que as pessoas assistem no celular, percebi que o vídeo tinha algo a ver com moda. Era uma troca de looks desconjuntados que pareciam debochar dos desfiles. Perguntei e ela me disse que era uma comediante. No decorrer da conversa, soube que Andreza era podóloga, que trabalhava em um salão no Largo do Machado, que não estava muito feliz ali, mas era melhor que outros lugares. Tinha dois filhos, estava no terceiro companheiro. Por conta da doença da mãe, não conseguiu terminar os estudos, mas ganhava uma grana extra fazendo serviços de atendimento para um aplicativo. Aos 26 anos, ela me confessou que desistiu da televisão e dos jornais há muito tempo, pois “ali só tem desgraça, eu prefiro ver coisas que me deixam feliz e essa coisa de moda, de roupa, de look, me deixa feliz”.
O NOVO SISTEMA DE MODA COMEÇA DIA 23 DE OUTUBRO
Novas tecnologias são as principais responsáveis por mudanças de paradigmas. Nós aprendemos a olhar para a moda de uma maneira, mas hoje ela se apresenta a partir de novos conceitos. Se você quer entender melhor como o sistema de moda já foi modificado e como ele está se projetando para os próximos 10 anos, inscreva-se nas últimas vagas do curso O Novo Sistema de Moda. Vamos sonhar com os pés no chão?
O objetivo do curso é percorrer o sistema de moda desde sua construção inicial até as projeções futuras do mercado. Vamos entrelaçar história e conceitos com movimentos políticos e econômicos. Para desvendar os desafios do mercado nacional, nas quatro últimas aulas, receberemos profissionais de diversas gerações com bagagem para apontar problemas e oferecer soluções. Espero conversar com você em breve.